25 de agosto de 2011

Heine, tal e qual









Não nos espantemos, que uma coisa é o poeta   
e outra o filósofo, ainda que sejam a mesma.   

Fernando Pessoa, “Poemas completos de Alberto Caeiro” .   
 


Responda rápido: quem foi Heinrich Heine? Alguma dificuldade? Fique tranquilo. O poeta e pensador judeu alemão que viveu na primeira metade do século 19 nunca teve no Brasil um registro à altura de sua importância. A lacuna, que percorre todo o século passado, tem seu primeiro parêntesis só agora, com o lançamento de “Heine, Hein? – Poeta dos Contrários” (Editora Perspectiva), que reúne em 544 páginas e 120 textos uma amostra da qualidade do autor que o mestre Jorge Luis Borges definia como “o primeiro poeta alemão”.

Heine (na imagem acima, retratado com sua mulher Mathide, em 1851, por Ernst Benedikt Kietz) foi uma
influência confessa não só para Borges: boa parte dos grandes autores dos últimos dois séculos, incluindo poetas, romancistas e pesos-pesados do pensamento como Marx, Nietzsche e Sigmund Freud – ou ainda os cânones da língua portuguesa, de Eça de Queirós a Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, entre muitos e muitos outros, fazem referências e reverências ao “poeta dos contrários”. Aluno de Hegel na academia berlinense, amigo de Balzac, Baudelaire e Chopin, Heinrich Heine (1797-1856) foi traduzido para o Brasil pelo também poeta André Vallias.







Heinrich Heine, tal e qual: acima,
o poeta em retrato pintado em 1831
por Moritz Daniel Oppenheim. No alto,
Heine com sua esposa Mathide em
pintura de 1851 de Ernst Benedikt Kietz.

Abaixo, Heine e a Musa da Poesia,
pintura atribuída a Georges
Moreau De Tours (1848-1901)






 A edição brasileira chega com saudações e elogios do especialista Augusto de Campos, que na orelha do livro registra que a publicação, com organização e tradução de André Vallias, é um dos maiores acontecimentos editoriais do Brasil dos últimos anos. Nenhum exagero. “Heine, Hein?” vale por um curso de literatura. Afeito ao idioma germânico (viveu na Alemanha de 1987 a 1994), Vallias vem de outras traduções e edições elogiadas de mestres universais especialmente difíceis – Georg Trakl, Vielimir Khlébnikov, Mandelstam, Laforgue, Verlaine...



Heine, hein?...


 

Com Heine, Vallias alcança o máximo daquela arte da tradução poética que outro mestre, Haroldo de Campos, chamava de “transcriação”: a empreitada criativa de transpor obstáculos intransponíveis para levar de uma a outra língua o impacto e a beleza originais. Com louvor, André Vallias completa as poucas e boas iniciativas de trazer Heine ao português, iniciadas por Jamil Almansur Haddad na década de 1940 e pelos versos escolhidos por Décio Pignatari em “31 Poetas – 214 Poemas” (Editora da Unicamp) em 1994.


 



Heine, tal e qual: acima, o poeta em
desenho de 1829 de Wilhelm Hensel.

Abaixo, em desenho de 1828 de autor
desconhecido; e em retrato feito a
lápis, datado de 1853, assinado por
Marcellin Gilbert Desboutins







Com cuidado didático, o tradutor adicionou aos textos de Heine um brilhante e bem-humorado estudo introdutório sobre a obra e um posfácio que esclarece a biografia do poeta, escritor, jornalista pioneiro e pensador, além de notas eruditas, trechos de cartas e da prosa do autor e um índice analítico-remissivo em minúcias. Na entrevista a seguir, André Vallias destaca a atualidade de Heine e sua poética desconcertante.

 
O título de seu livro é um achado, bene trovato. “Heine, Hein?”, a partir do título, traduz o humor e a ironia desconcertante do autor...

ANDRÉ VALLIAS - Você tem razão. Considero o título, especialmente na disposição gráfica em que se encontra na capa, um verdadeiro ideograma da obra, que aponta para o desconhecimento do autor entre nós, para a dificuldade de pronunciar seu nome (fato que o próprio poeta ironizava entre os franceses), para o desconcerto que sua personalidade gerava, para a complexidade de sua poesia, que transita com incrível desenvoltura pela lírica, pela sátira e pela política – sofisticada e, ao mesmo tempo acessível. O título foi sugerido pelo grande poeta e designer gráfico Age de Carvalho. É curioso que também provoque aversão – já fui repreendido algumas vezes por tê-lo escolhido, mas as reações têm sido predominantemente positivas.








Posso dizer que a ausência de edições da obra de Heinrich Heine no Brasil foi um dos grandes equívocos do nosso mercado editorial no século 20?

É realmente difícil de entender a reduzida quantidade de traduções da obra de Heine, tanto no Brasil como em Portugal, apesar dele ter inspirado vultos como Machado de Assis e Eça de Queirós. Ainda mais espantoso se compararmos com a quantidade de edições disponíveis em língua espanhola. Eis aí um belo tema para os germanistas pesquisarem.

Qual a característica marcante de Heine que fez escola entre poetas e pensadores que vieram depois dele?

Não sei se podemos dizer que Heine tenha feito escola. Sua poesia e pensamento continuaram polêmicos e provocadores até a década de 1960, e só recentemente, a partir dos anos de 1990, sua obra começou a ser intensamente estudada, especialmente no EUA. No Brasil, já se nota um interesse crescente na área acadêmica. Mas o humor talvez tenha sido a característica mais imitada de sua criação, o que acabou trazendo prejuízo à recepção de suas ideias inovadoras. Algo semelhante ao que aconteceu, entre nós, com Oswald de Andrade, por exemplo.








Heine, tal e qual: acima, os únicos
remanescentes dos desenhos feitos
por Heine na década de 1820. Na
imagem abaixo, fac-símile de uma
carta do poeta datada de 1845 e
endereçada a Jenny Marx, esposa
de Karl Marx. O documento foi
descoberto em 2005, em um arquivo
em Moscou, por pesquisadores do
Instituto Heine de Düsseldorf e indica
que houve aproximação e uma amizade
incomum entre o poeta alemão e Jenny,
na época em que Heine já estava
casado com Mathilde e Jenny também
já era esposa de Karl Marx.

Abaixo, Jenny e Karl Marx em Londres,
em daguerreótipo datado de 1869; e uma
cena do filme alemão Heinrich Heine,
dirigido em 1978 por Klauss Emmerich, com
Christoph Bantzer no papel de Heine
Eva Schuckardt como Mathilde
 













E o trabalho da tradução? Seu livro contradiz Caetano Veloso, naquele verso famoso de “Língua” que diz que está provado que só é possível filosofar em alemão...

Pode ser, ou talvez até reforce a provocação irônica de Caetano. Mas quem sabe a obra desse transgressor de fronteiras possa sugerir novas maneiras de se "pensar", mais adequadas ao nosso humor e temperamento.

Por que a definição de Heine como “poeta dos contrários”?


O subtítulo do livro remete aos retratos que dele fizeram alguns de seus contemporâneos – aos quais chamei "daguerreótipos", como este do poeta Théophile Gauthier: "ele era, ao mesmo tempo, alegre e triste, cético e crente, meigo e cruel, sentimental e escarnecedor, clássico e romântico. Alemão e francês, delicado e cínico, entusiasta e pleno de sangue-frio; tudo, menos tedioso". Há também a própria conclusão de Heine de ter sido paladino e carrasco do Romantismo: foi romântico e também foi anti-romântico.











André Vallias, tradutor de Heine:
"Heinrich Heine foi paladino e carrasco
do Romantismo. Foi romântico e 
também foi anti-romântico". Acima,
fac-símile de uma carta assinada por
Heine. Abaixo, retrato do poeta
em litografia de 1851








Depois da “prova de fogo” da poética de Heine, qual seu próximo projeto?

Ainda não me livrei de Heine! Estou agora trabalhando na tradução de dois longos poemas seus, com temas relativos ao "Novo Mundo", que pretendo publicar no ano que vem: um sobre a conquista do México por Hernán Cortés ("Vitzliputzli") e outro sobre Ponce de León e a lendária fonte da juventude. Mas devo também concluir a antologia de poemas e cartas do poeta austríaco Georg Trakl (1887–1914), já bastante adiantada. E Heine...


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Heine, tal e qual. In: Blog Semióticas, 25 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/heine-tal-e-qual.html (acessado em .../.../...).







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Heinrich Heine em pintura de 1848
de autor desconhecido. Abaixo, uma
homenagem ao poeta na escultura em
metal instalada na janela da casa em
que Heine morou em Düsseldorf, na
Alemanha; o busto de Heine no campus da
Universidade Heinrich Heine de Düsseldorf
e a tumba do poeta no cemitério
de Montmartre, em Paris




Palavras de Heine:




1. Aos seus olhinhos tão queridos
 
Compus esplêndida quadrinha;
À sua boquinha tão querida,
Compus magnífica trovinha;
À sua carinha tão querida,
Compus notável cançãozinha.
Assim que tiver um coração, prometo
Compor, inteirinho, um bonito soneto.

Heinrich Heine (tradução de Décio Pignatari)


2. Vem,  linda peixeirinha
 
Trégua aos anzóis e aos remos.
Senta-te aqui comigo,
Mãos dadas conversemos.
Inclina a cabecinha
E não temas assim:
Não te fias do oceano?
Pois fia-te de mim.
Minh’alma, como o oceano,
Tem tufões, correntezas,
E muitas lindas pérolas
Jazem nas profundezas.

Heinrich Heine (tradução de Manuel Bandeira)



3. “Os sábios criam novos pensamentos, e os tolos os divulgam”

Heinrich Heine (tradução de Machado de Assis)


4. Legado

A minha vida chega ao fim,
Escrevo pois meu testamento;
Cristão, eu lego aos inimigos
Dádivas de agradecimento.

Aos meus fiéis opositores
Eu deixo as pragas e doenças,
A minha coleção de dores,
Moléstias e deficiências.

Recebam ainda aquela cólica,
Mordendo feito uma torquês,
Pedras no rim e as hemorroidas,
Que inflamam no final do mês.

As minhas câimbras e gastrite,
Hérnias de disco e convulsões –
Darei de herança tudo aquilo
Que usufruí em diversões.

Adendo à última vontade:
Que Deus caído em esquecimento
Lembre de vós e vos apague
Toda a memória e sentimento.

Heinrich Heine (tradução de André Vallias)







 




12 comentários:

  1. Antonio Carlos Soares25 de agosto de 2011 às 15:59

    Foi o Álvaro, seu aluno e um grande amigo que temos em comum, quem me deu a dica para visitar o seu blog. Ele falou de uma mágina mágica sobre as Viagens de Alice, mas ele estava errado.
    Porque todo o seu blog é maravilhoso, José. Parabéns com um abraço, vou voltar sempre. Deixo uma dica para você incluir no belo artigo sobre o Heine. Adoro: "Deus nos deu a palavra para que possamos dizer coisas amáveis a nossos melhores amigos e duras verdades a nossos piores inimigos."

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  2. Enquanto não leio o livro do Vallias, deixo aqui um comentário do Antônio Cícero sobre o "só é possível filosofar em alemão":

    "(...) abstraindo da canção de Caetano, consideremos a própria tese de Heidegger. Para ele, a língua que hoje mais se aproxima da grega antiga -que considerava a língua do pensamento por excelência- é a alemã. Essa pretensão tem uma história. Os poetas e pensadores românticos da Alemanha inventaram a superioridade filosófica do seu idioma porque foram durante muito tempo assombrados pela presunção, que lhes era opressiva, da superioridade do latim e do francês."

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  3. há muitos blogs, mas nem todos com o cuidado estético, literário e crítico, como este. Mais ainda: divulga o que é essencial sem ficar restrito em altopromoção. mário

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  4. Ei José Orlando, muito bom. Serei tolo, e divulgarei bons pensamentos que li por aqui. Fico feliz de perceber que a filosofia e outros campos, como a semiótica, precisam do humor como parte integrante do processo de reflexão. Agrande abraço, Filipe Natanael

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  5. Demais!!! Demais mesmo! Amando o blog!

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  6. José, meu caro. Que beleza de blog, que qualidade de texto, que seleção incrível de assuntos, que edição profissional e inteligente! Seu blog foi uma das mais gratas surpresas que encontrei na internet nos últimos tempos. Parabéns para você.

    Tem uma frase de Heine que você deve conhecer. Eu guardei na memória quando lí, há muito tempo, citada em uuma crônica do Fernando Sabino. É assim: "A flecha deixa de pertencer ao arqueiro, quando abandona o arco; e a palavra já não pertence a quem a profere, uma vez que passe pelos lábios."

    Seu blog é esta flecha, arqueiro José. A qualidade do seu trabalho já circula por aí, independente da sua vontade. Encontrei o link para o Semióticas num site oficial sobre cultura alemã no Brasil. O seu Semióticas está lá, recomendado e em destaque. Garanto que você não sabe disso, porque tirando o Heine, não encontrei outras referência à Germânia (risos). Ainda assim, foi a flecha que me trouxe às suas páginas belas e sofisticadas. Sou grato pela generosidade e pela seriedade sem igual do seu trabalho. Parabéns, Semióticas! Vida longa e prosperidade!

    Gilberto da Gama

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  7. Três descobertas simultâneas que valem por mil passarinhos voando: Heine, o poeta dos poetas, Semióticas, um blog espetacular, e José Antônio Orlando, jornalista de talento pelo visto a toda prova. Parabéns e agradeço pelas páginas inspiradas e inspiradoras. Aguardo as próximas.

    Lígea Santanna

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  8. Muito bom o seu blog Semióticas, excelente em todas as matérias e todas as imagens. Aprendo muito a cada visita que faço. Agradeço muito. Parabéns!

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  9. Américo Melo Franco27 de maio de 2014 às 19:52

    É o melhor artigo que já encontrei sobre Heinrich Heine. Sensacional a entrevista com o poeta e tradutor André Vallias. Surpreendente que seja em um blog. Virei fã de carteirinha deste Semióticas. Américo Melo Franco

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  10. Sempre fico muito impressionado, a cada visita que faço a este seu site Semióticas, com a sua capacidade de transformar assuntos da maior complexidade em textos fluentes e saborosos na leitura, além de sua capacidade de editar imagens lindas que fazem um diálogo perfeito com o assunto em questão. Parabéns, José Antônio Orlando. Seu trabalho apresentado aqui é notável. Arrisco dizer que esta é a melhor abordagem que já encontrei sobre Heinrich Heine. E as outras páginas que já visitei aqui no site também são dignas de elogios e aplausos. Sou seu fã e agradeço sua gentileza em compartilhar tanta beleza e sabedoria.

    Augusto Ferreira

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  11. Parabéns de novo que esta é mais uma matéria maravilhosa deste blog Semióticas. Vale por uma aula, ou talvez por um curso completo sobre o poeta dos poetas Heinrich Heine. Muito obrigada também pela dica do livro que eu não conhecia.

    Marcela de Oliveira

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  12. Cristina Silva Motta5 de maio de 2023 às 12:31

    Linda postagem e linda esta história da Jenny Marx, senhora Marx, que eu não conhecia. Parabéns por este blog Semióticas sensacional.

    Cristina Silva Motta

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